Reprise de ‘ A Força do Querer’ da TV Globo mostra que preconceito contra transexuais e travestis pouco evoluiu em três anos.


Psicóloga especialista no assunto responde perguntas e explica como trabalhar a discriminação.



Depois de três anos a novela de Glória Perez, Força do Querer, da TV Globo volta a ser exibida em reprise devido aos tempos de Pandemia, onde a solução para o afastamento social nas gravações foram os remakes.

Um dos temas centrais da trama é a estória de Ivana, vivida pela atriz Carol Duarte, que apresenta total desconforto com seu corpo (pois não se vê em um corpo feminino) e acaba atravé da terapia se descobrindo transexual. Na trama também existe outra estória que foca no travesti Elis Miranda, interpretado por Silvério Martins que de dia trabalha como o motorista Nonato e a noite assume sua verdadeira personalidade feminina.

Mesmo depois de três anos pesquisas da própria TV Globo mostram que ainda há uma onda conservadora, apesar de muitos transexuais e travestis ocuparem espaços que antes eram impensáveis. Carol Duarte diz que “Três anos é pouco e dá para olhar com os óculos de 2020, parece pouco, mas é muito”. Tantas pessoas trans já conquistaram tantos espaços, que rever essa novela é interessante para saber o quanto a gente andou e o quanto a gente ainda precisa caminhar. Isso foi em 2017: onde estamos e para onde queremos ir?”

A psicóloga clínica Vanessa Jaccoud, Membro da WPATH (World Professional Association for Transgender Health)- Associação Mundial de Profissionais de saúde para Transgêneros, responde perguntas referentes ao assunto, esclarecendo diversas dúvidas sobre a transgeneralidade. Confira.

 



1-
 Como saber se a criança realmente é um indivíduo transgênero ou apenas não se ajusta a certos padrões?

Na verdade, o melhor é sempre ampliar o conhecimento sobre a criança através de uma observação atenta dos filhos e uma escuta ativa. Estes serão sempre um bom caminho! Muitas vezes, crianças não se adaptam aos padrões estabelecidos pela sociedade do que é para menina e do que é para menino. O desafio mesmo é que, com a contemporaneidade, conceitos antes pautados para o masculino ou para o feminino, atualmente vem sendo desconstruídos, o que pode acabar sendo um pouco mais delicado e confundível para a compreensão de alguns pais advindos de outras gerações. Acredito que a parentalidade atual seja uma das missões mais complexas do humano, uma vez que, frente a tantos avanços e modificações tecnológicas e humanas, sejamos expostos à situações que demandam um freio no que é “nosso entendimento subjetivo”, para permitirmos que nossos filhos se expressem originalmente fora de nossas idealizações. O que chama atenção para a questão da transgeneridade na fase infantil é o sofrimento presente no discurso da criança, na recusa de padronizações que não o representam, na postura e comportamento da criança em determinadas situações impositivas do seu papel de gênero, obviamente, aqui ressalto a boa educação dos pais para estes filhos, considerando suas crenças como esta criança deve se desenvolver e se educar, contudo, sem ferir a subjetividade, a expressão particular e original deste sujeito ainda infantil, porém único.

 

2- Como um jovem pode ter certeza de que é transgênero?

Certezas nessa área do humano não são uma ciência exata como a matemática por exemplo! Precisamos ter cuidado... a cisgeneridade pode ser compreendida por alguns como uma certeza, mas não por outros...da mesma forma a própria transgeneridade. Creio que tudo deva mesmo ser compreendido no PROCESSO, acompanhado por um especialista, pois, a complexidade da transgeneridade demanda este critério minucioso com tantas especificidades a serem observadas e trabalhadas no caso. Alguns de nós  tem certeza da sua cisgeneridade, da mesma forma a pessoa trans também pode ter essa certeza. Hoje, no Brasil, ainda há a necessidade de laudos e confirmações técnicas de especialistas, com uma demanda, muitas vezes, de enquadramento em campos de preconceito e exclusão. As pessoas trans não se identificam com o gênero de nascimento, e isso causa dor e sofrimento quando não são validadas em sua singularidade. Quando fazem a transição, em sua grande maioria, elas relatam melhor qualidade de vida, apesar dos imensos preconceitos sociais enfrentados. Existe grande sofrimento implicado potencialmente no enfrentamento desses desafios biopsicossociais. Na verdade, a maioria das pessoas trans diz ter percebido algo em desacordo, que a incomodava desde a infância, mas muitas vezes não conseguiu traduzir esse sentimento ou não teve coragem de expressá-lo. Assim, podemos dizer que a certeza vem da certeza de quem sente, mas, como muitos não tem a certeza, o processo de tratamento psicológico para o desconforto holístico ou inclusive sintomático (alguns já trazem sintomas e/ou doenças diagnosticadas que se tornam cíclicas, recorrentes, as quais comunicam o desequilíbrio total). Um especialista de Psicossomática que atue neste campo, poderá auxiliar neste processo de diagnóstico da transgeneridade, uma vez que compreende todos os outros processos elencados no quadro, não somente os psíquicos e emocionais, mas também os fisiológicos do paciente.

 


3- As pessoas ainda confundem identidade de gênero com orientação sexual. Afinal, qual é a diferença?

Confundem muito, e é bastante importante esclarecer. Identidade de gênero se refere à identificação com o masculino ou o feminino, construídos histórico e culturalmente. As pessoas que se identificam com o gênero de nascimento são denominadas cisgêneros, e as que não se identificam são transgêneros. Nesse caso, a pessoa trans se enxerga de forma diferente da que nasceu. É importante esclarecer também que as pessoas trans podem transitar entre as duas maneiras, masculino e feminino, o que chamamos de não binárias.

Quando falamos de orientação sexual, nos referimos ao desejo, ou seja, para quem orientamos o nosso desejo. Se for orientado a pessoas do mesmo sexo, estamos falando de homossexualidade, se for para sexo oposto, de heterossexualidade. Logo, uma mulher trans, que nasceu com o sexo masculino e fez a transição para o sexo feminino, pode destinar o seu desejo sexual e afetivo a um homem ou a uma mulher, podendo assim ter uma orientação sexual hétero (com um homem) ou homossexual (com outra mulher). Aqui incluo também que a orientação sexual de um indivíduo cisgênero ou transgênero indica quais são os sexos/gêneros que o atraem (física ou emocionalmente).Ela pode ser assexual (nenhuma - ou raros, ou específicos momentos de - atração sexual), bissexual (atração por pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto), heterossexual (atração pelo sexo oposto), homossexual (atração pelo mesmo sexo) ou pansexual (atração independente do gênero).

4- Os pais devem temer que o filho ou a filha “mude de gênero” e depois se arrependa?

Isso não é uma constante, muito provavelmente não vai acontecer se a transição for realizada com observância dos critérios diagnósticos necessários. Algumas pessoas do senso comum defendem que a transgeneridade é apenas uma fase de um indivíduo, mas a experiência científica mostra que o sentimento e a percepção de identificação com o gênero oposto ao que seu corpo apresenta, aumenta com o passar do tempo, assim como todo o desconforto envolvido no quadro. Na verdade, quando crianças, muitos destes indivíduos dizem que estão presos em um corpo errado, o que lhes causa dor e constrangimento durante toda a vida. O sofrimento existencial será o grande termômetro norteador do prognóstico do caso. Existem indivíduos que resolveram destransicionar o gênero após um período longo frente ao que antes acreditava ser seu gênero de identificação. Alguns destes indivíduos, inclusive, com processos de transição iniciados fisiologicamente e psicologicamente. Acontecem muitos casos com comorbidades, os quais, paralelo à incongruência de gênero, podem confundir psicologicamente o indivíduo no processo todo, o qual é longo e contínuo, sendo tão indispensável, por este motivo, o acompanhamento profissional de um especialista. Eu, particularmente, não acompanhei processo de destransicionamento dos meus pacientes, contudo, ressalto que atuo profissionalmente e sempre em consonância com o indivíduo que está em tratamento comigo, considerando minha expertise, embora sempre pautada pela noção desta involução ou até mesmo extinção do sofrimento existencial deste, se for possível. A meta mais assertiva será mirar no no bem estar e na qualidade de vida do paciente, o que também é sempre muito relativo em se tratando de transgeneridade, pois o que para mim representa qualidade de vida e bem estar, pode não representar para meus pacientes. Tudo muito subjetivo num processo humano tão complexo quanto este.

 5- Qual é o momento ideal para iniciar o tratamento hormonal?

Um médico especialista deve responder essa pergunta porque envolve diversos aspectos fisiológicos e hormonais que devem ser bem avaliados. No nosso País a idade mínima para iniciar a utilização de hormônios em indivíduos transgêneros é 18 anos. Protocolarmente a equipe que atua com estes indivíduos saberá do psicólogo quando o indivíduo estará apto para este processo. Nem todos os indivíduos em transição de gênero optam por utilizar hormônios. Muitas vezes, o tratamento psicológico em si e somente, já é suficiente para amenizar o sofrimento existencial de alguns destes indivíduos. 

Minha equipe trabalha com um período mínimo para atendimento psicológico, para então, se for o caso, passar para a fase de administração dos hormônios via médico endocrinologista. O ambiente psicológico deve estar muito bem trabalhado para esta etapa, a transição psíquica/imagética/emocional e perceptiva já precisam estar bem mais conscientes para recepção do procedimento, os clínicos conversam entre si e alinham suas orientações e percepções. É uma equipe de cuidados e a confiança profissional de buscar garantir o conforto ao paciente é premissa em nossas considerações e deliberações. Alguns pacientes chegam ao meu consultório com muita pressa para esta etapa do tratamento, a tão sonhada transição hormonal que irá modificar corpo e traços fisionômicos, dentre outros aspectos concretos. Nesses casos, com muito acolhimento explico que é um processo que iremos, se for o caso, construir juntos, e, após muitas explicações e elaborações por parte do paciente, a pressa se torna mais branda e a aceitação do “processo” e protocolos mínimos acontece.

 

6- E o caso da cirurgia, como fica?

Existem cirurgias plásticas que auxiliam na redesignação de gênero, como a colocação de próteses mamárias para transgêneros mulher ou a mastectomia que atua com a retirada das mamas em transgêneros homens. Outras cirurgias como a bichectomia, rinoplastia, dentre outras para rosto e corpo, são auxiliares e complementam, quando é desejo do paciente, o reconhecimento imagético-psíquico-emocional-social do indivíduo em seu gênero transicionado. Ressalto que para uma decisão nesta proporção, o indivíduo em transição de gênero, deve estar sendo acompanhado psicologicamente por um especialista, a fim de acomodar as diferentes fases do seu transicionamento, pois, conforme o tratamento hormonal, os procedimentos cirúrgicos são processos irreversíveis em sua maioria, os quais deverão estar muito bem trabalhados e elaborados pelo paciente via equipe de cuidados. O  cirurgião plástico da minha equipe é extremamente sério, assim como todos nós, e, apesar do acolhimento da pessoa em questão, coloca a segurança do paciente acima de tudo, incluindo a recusa em trabalhar desejos não tão possíveis. A segurança e bem estar do paciente vem acima de tudo. Existem também outras cirurgias de redesignação sexual das genitais, as quais, nossa equipe não trabalha e honestamente, não conheço quem já as realize aqui no Brasil. 

7- Como trabalhar a discriminação?

Seria de extrema utilidade que todos os pais, mesmo os que não têm filhos trans, dialogassem com seus filhos sobre essa questão, porque se sabe que a maioria das manifestações preconceituosas, de desrespeito e discriminação, partem de uma juventude tomada por ódio e desconhecimento. O ensino de valores éticos em casa é fundamental para que pessoas não sejam mais humilhadas, agredidas e até mesmo assassinadas por sua identidade de gênero. Esse é um tema que deve ser discutido e difundido porque é uma realidade que foi, por muito tempo, escondida. O que acontece é que não se fala sobre esse assunto em casa ou nas escolas, e muitas pessoas crescem olhando para os trans como aberrações. O ideal, para uma sociedade de paz, é a informação e o consequente extermínio de pensamentos preconceituosos e atitudes discriminatórias. Segundo fontes jornalísticas e investigativas, dados apontam o Brasil como líder no ranking mundial de assassinatos de transgêneros e travestis. Com a correta informação e respeito podemos modificar este panorama hediondo. 

 8-E o caso da cirurgia, como fica?

A cirurgia de redesignação sexual, ou seja, de mudança das características sexuais, apenas deve ser realizada quando há expressa vontade do indivíduo em transição. Essa questão no Brasil ainda é pouco divulgada e de difícil acesso. Um ponto importante é que nem todos os indivíduos transgêneros desejam se submeter a intervenções cirúrgicas, e isso não as torna menos mulheres ou homens, porque a questão, como já dito, está relacionada à identificação que se tem com o gênero feminino ou masculino. De toda forma, caso a cirurgia seja uma solicitação e desejo do indivíduo em transição, trabalharemos as possibilidades em equipe, ofertando todas as informações possíveis ao paciente, respeitando os critérios e protocolos pertinentes ao processo. 

9-Como apoiar um filho trans?

Converse com seu(sua) filho(a) sempre e acolha suas questões. Não se enfrenta nada à distância. É importante tentar compreender os motivos dele(a) em ter ou não falado à respeito. Busque especialistas, informações e pessoas ou famílias que estejam passando pelo mesmo processo para possíveis trocas de experiências. O isolamento não é o melhor caminho. 

10-Muitos pais se cobram e se sentem mal por não conseguirem apoiar os filhos como gostariam. É normal precisar de tempo para compreender a situação?

Muitos pais podem estar ancorados em preconceitos ou ideias estereotipadas perpetuadas na nossa sociedade ao longo de gerações, logo, pode haver dificuldade de comunicação em relação a essa questão, até porque é comum que as pessoas em transição de gênero também não saibam como se comunicar da melhor forma. Existe uma enorme complexidade no caso, tanto para a família que acolhe quanto para o indivíduo que enfrenta seu processo de transição. 

Sentimentos de ambivalência, traição, medo, luto, dentre outros, se misturam entre os membros da família e o indivíduo em transição de gênero, mas, quando há o desejo de apoio ao filho ou à filha trans, é essencial que os pais tentem deixar que eles expressem seu universo interno, bem como, também é fundamental que os familiares tenham seu lugar de fala, acolhimento e compreensão sobre seus sentimentos, dúvidas e processos internos. Mas é claro que tudo isso requer tempo de elaboração e superação de uma possível fase de negação dos pais e familiares. A família também deve ser integrada ao processo de transição. Se existisse uma fórmula, diria que é afeto, acolhimento e diálogo. Quando há dificuldade de conversar, indicamos a terapia familiar, que tem se mostrado bastante eficaz como um espaço de expressão saudável da família.




11- E o caso Tammy Miranda, que agora é pai mas ainda não operou? Como fica a cabeça dos filhos? 

Creio que esta família saberá buscar recursos profissionais, se for o caso, para lidar com possíveis entraves ao longo da caminhada deles. Criar uma criança em si já é uma missão complexa, e, no caso da família de um indivíduo trans não seria diferente. Questões devem ser trabalhadas à medida que estas se apresentem. Conforme disse antes, não existe uma regra para todos como se fosse uma receita de bolo. Muitas vezes o que vai confundir a mente, a cognição de uns, será facilmente encarada e compreendida por outros. Prefiro não trabalhar com especulações ou tentar responder perguntas sem resposta. Estou certa que saberão lidar ou buscar ajuda necessária para lidar com as questões da família deles, assim como fazemos com as nossas. A normalidade é uma coisa relativa.



12-E os travestis? Como a senhora os vê perante a sociedade? As pessoas os aceitam mais que os transexuais? 

 Os travestis são pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, não necessariamente se reconhecendo como mulher ou homem. A questão dos travestis está exatamente no processo de transicionamento. Os travestis não entraram em transição, embora estes se percebam melhor na expressão de gênero do sexo feminino e, inclusive, utilizem de recursos que os posicione neste gênero. Sobre mim posso dizer que busco respeitar os direitos das pessoas sempre, pois isso é o mínimo esperado!  Somos todos parte de uma grande nação composta por indivíduos diferentes entre si, nada tenho a discriminar à respeito do outro. Não estou tão certa desta aceitação maior ou menor entre travestis e transexuais pela Sociedade.

13-Eles também precisam de tratamento quando querem fazer a cirurgia. Como é este tramento? 

No caso de travestis buscando por transição de gênero, o tratamento seguiria o mesmo protocolo, porém, muitos travestis fazem e buscam apoio psicológico para lidar com suas questões existenciais, assim como muitos de nós fazemos também.

14-Gostaria de deixar algumas palavras que não foram ditas acima? 

A transgeneridade é uma situação humana complexa que demanda uma natureza desprovida de preconceito e discriminação por parte da sociedade e dos profissional de saúde. Ali estão indivíduos que buscam e precisam de apoio social, inclusive, pois muitos sequer conseguem emprego para seu próprio sustento. O índice de assassinato é enorme, bem como as ideações suicidas e o desejo de acabar com tudo o que passam. Devemos atuar para minimizar o sofrimento daqueles que sofrem, pois, como dizia Cicely Saunders  "O sofrimento humano só é insuportável quando ninguém cuida dele.”

 

Serviços:



Drª Vanessa Jaccoud

Psico-Oncologista, Psicóloga clínica, residente no ambulatório de Psicossomática da Santa Casa de SP e membro da WPATH (World Professional Association for Transgender Health)- Associação Mundial de Profissionais de saúde para Transgêneros, SBPO e ABMP-SP.

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